Iniciativa inédita pergunta a menores em situação de adoção que família eles querem. Para a maioria, não importa a orientação sexual de quem vai adotar

Yasmim, de 13 anos, abre um sorriso largo e sincero para a câmera e exclama “Maravilhoso!”. É que Yasmim será adotada por duas mulheres, que darão à menina o que ela sempre quis, uma família, e para a Yasmim não há qualquer importância se essa família é formada por homo ou heterossexuais. A menina tem histórico de maus tratos na família de origem, em que não recebia o que mais necessita uma criança: cuidado. “Nós somos seres de cuidados, ninguém nasce só”, explica a psicóloga Maria da Penha Oliveira Silva, concordando que essa necessidade de cuidados faz com que o ser humano passe por cima de um possível preconceito.

Penha é coordenadora da Aconchego, uma instituição que há 25 anos atua no Distrito Federal no apoio a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social ou risco dentro da própria família, e àquelas que aguardam em instituições, os chamados abrigos, para serem adotadas. Yasmim, por sua vez, é uma das 18 crianças e adolescentes que participaram recentemente de uma oficina chamada Entrelaços, idealizada por Maria da Penha com um objetivo principal de perguntar e saber da criança e do adolescente colocado para adoção algo que nunca perguntam a eles: que família eles querem?

Segundo a psicóloga, adultos quando vão a uma vara de infância se candidatar a pais adotivos são convidados a pensar que criança eles querem. “Eu quero uma menina, de zero a três anos, que não tenha problema de saúde e que não tenha irmãos. Ou eu quero um casal, que não tenha problema de saúde e que tenha até determinada idade. E então eu sempre pensava: e as crianças? Que família elas querem? E isso é o que me fez dar essa oficina”, explica Penha, acrescentando que as pessoas só conversam com a criança sobre adoção quando já há alguém ou alguma família interessada.

Existem, no Brasil, cerca de quatro mil crianças e adolescentes para serem adotados. Juridicamente, encontram-se no estado de Destituição Familiar, ou seja, a família de origem não possui mais qualquer condição de ficar com o menor. Então, ele é inserido no Sistema Nacional de Adoção, por intermédio do Conselho Nacional de Justiça.

Paralelamente, há 30 mil pessoas e/ou casais querendo adotar uma criança ou um adolescente. Um outro número são os cerca de 20 mil menores acolhidos, aqueles que por alguma necessidade foram retirados de sua família por violação de direitos (violência, abusos). Nesses casos, eles vão para uma família acolhedora ou abrigos (não se usa mais a palavra orfanato) até que a situação do menor seja resolvida.

“Não vejo nenhum problema o desejo de ter um filho bebê, mas a gente precisa dizer para a sociedade que existem crianças de nove anos em diante, que existem adolescentes que querem muito uma família”, explica Maria da Penha Oliveira Silva, psicóloga e coordenadora do Aconchego.

É bom lembrar que em uma instituição a criança não está necessariamente à disposição para adoção. Depois de estudar o caso, pode se tentar que o menor retorne à família, ou que fique com um parente próximo (avós ou tios). Apenas em casos extremos, como abuso sexual, é que já se determina no início que a criança não retornará à família. “Eu não consigo imaginar uma criança convivendo com um adulto que abusou sexualmente dela. Abuso sexual não tem volta”, sintetiza Penha, esclarecendo que existem negligências contornáveis. “Quando a mãe bebeu demais um dia, sumiu, não voltou, são situações contornáveis. É possível trabalhar isso? Claro que é possível. Ah, mas a criança ficou só. Sim, gente! Quantos adultos de classe média alta deixam os filhos sozinhos? E deixam com a empregada? Ok, a empregada tá olhando. Até que ponto a gente sabe? E nunca ninguém foi preso por causa disso”, ilustra.

A oficina – pioneira, segundo Maria da Penha – foi dividida em cinco etapas. A primeira tratou da própria identidade da criança, passando pela sua vida antes do abrigo, ou seja, situação dela na família de origem. Segundo Penha, o momento mais crítico foi justamente a oficina que tratou da saída da criança da família. Vieram as lembranças dos maus tratos e agressões, lembranças de muita dor, como a perda de um irmão em um tiroteio. A idealizadora destaca que por mais estranho que possa parecer, alguns chegam a rir dessas memórias. “Em vez de chorar, a gente faz é rir”, diz uma menina em um vídeo de 17 minutos que explica o objetivo da oficina.

Essas lembranças, por piores que sejam, acabam, quando o menor já está no abrigo, misturadas a um sentimento de perdão às famílias e mais: de se sentirem culpadas. “A criança quando chega ao abrigo precisa saber por que foi acolhida. Por quê? Elas se sentem culpadas (algumas falam isso no vídeo), porque são elas que saem da família”, explica Penha. “E quando eles saem, o agressor fica e ela vai para o abrigo, que não é uma cadeia, mas no abrigo ela terá limitações porque ela é uma criança, e no entendimento da criança ela está ali quase que numa prisão, sem falar da forma como às vezes ela é retirada da família (pelo conselho tutelar) e isso gera uma fantasia de que ela está sendo presa”, acrescenta a psicóloga.

No vídeo, é possível perceber a imagem ruim que alguns menores guardam dos conselheiros tutelares. “Não disseram nada. Me colocaram no carro e depois eu fui para o abrigo”, conta Letícia de Jesus dos Santos. “Mostram (essas situações) a nossa falha social, a falta de políticas públicas”, aponta, ainda no vídeo, Soraya Pereira, presidente do Aconchego.

As 18 crianças e adolescentes que participaram da oficina têm entre nove e 17 anos e vivem em seis abrigos do Distrito Federal. Todas estão colocadas para adoção. “Por que eu escolhi essa faixa etária? Porque nela estão as crianças que são mais excluídas do processo de adoção, porque as famílias não querem crianças grandes, elas querem crianças pequenas”, explica a idealizadora, que, no entanto, não faz juízo de valor. “Ok, não vejo nenhum problema o desejo de ter um filho bebê, mas a gente precisa dizer para a sociedade que existem crianças de nove anos em diante, que existem adolescentes que querem muito uma família”. Penha rebate com veemência o senso comum de que “criança mais velha já tem formada a sua personalidade”. “Isso não existe! É mais trabalhoso? Talvez seja, mas aquele bebê que foi adotado será um adolescente, e que garantia eu tenho de que será um adolescente fácil?”, argumenta.

Penha quer ajudar as pessoas a terem a consciência de que “filho, se é por adoção, pode nascer de qualquer idade. O que vai ajudá-lo é o cuidado”. “Nós somos seres em desenvolvimento. A gente se desenvolve até a morte. De onde se tirou que uma criança de nove anos já desenvolveu tudo? Não existe isso”, finaliza com veemência. “Muitas vezes a família quando adota uma criança maior acha que a criança não precisa de alguns princípios. E o princípio maior da adoção é o cuidado. Se ele chega com 16 anos, vai querer ser cuidado igual um bebê. Ele precisa refazer esse movimento de pertencimento. Então a família não pode achar que porque ele tem 16 anos não tem muita coisa mais. Só que tem uma coisa: essa criança precisa de algo que ela nunca teve, e ela vai provocar para ser cuidada. A ideia é que a gente cuide para que a criança não precise solicitar através de seu comportamento”, adverte a psicóloga.

Outro assunto da oficina foi o futuro. Entre as dores do passado e a indefinição do presente nos abrigos, Penha conta que muitos menores perguntaram “Futuro de quê? ”. Mas quando a possibilidade de um futuro melhor foi trabalhada, surgiram os sonhos e os desejos. “Ser feliz, ganhar uma família, fazer faculdade, ser bonita, ou simplesmente seguir a vida em frente” são ambições que aparecem no vídeo. Nessa perspectiva do “daqui pra frente”, finalmente a pergunta, feita em questionário, “Que família você deseja?”. A maioria disse apenas “Eu só quero uma família”.

“O que importa realmente é ser amado. Pela primeira vez, de uma forma oficial, a criança nessa situação tem uma voz, e pode ser protagonista de sua vida”, exulta Soraya, no vídeo. “Pra mim tanto faz”, garante Lorena, 10 anos, quando é perguntada por que tipo de família ela deseja ser adotada. “Desde que a família seja uma família alegre, uma família feliz, sem bater”, porque, de acordo com a menina, “A minha mãe agia ‘da forma de bater’”. “Pode ser qualquer pessoa. Tipo assim mãe, duas mães, pai, dois pais. Me dando carinho e amor…”, complementa Ana Clara, de 13 anos.

Mas é claro que os muros do preconceito podem estar de pé em qualquer idade. Uma das crianças, segundo Penha, disse que não queria um casal homoafetivo, e sim o formato tradicional de pai homem e mãe mulher. “Tudo bem, é direito dela”, mas indicando que uma criança assim “precisa ser trabalhada para aceitar outros universos além daquele que ela deseja para si”.

A posição desta criança lembra a Penha outro caso, o de uma menina que foi adotada por um casal homoafetivo e que, em determinado, dia resolveu que queria um casal homem-mulher como pais. A adoção foi desfeita e a criança voltou para o abrigo. Depois de algum tempo, a menina se arrependeu e quis voltar para a família, “Por que aí nasceu o desejo de ser cuidada”, explica Penha, independentemente da sexualidade dos pais. Só que era tarde, a família não quis mais, alegando que durante cerca de um ano haviam feito de tudo para que desse certo e que não era possível uma segunda chance. Na opinião da psicóloga, a garota percebeu “que não importa o jeito como as pessoas se amam, que o amor está acima da sexualidade”. Ou seja, também na adoção, qualquer maneira de amor vale a pena.

Texto por: Por André Giusti via Projeto Colabora

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