Por Maria da Penha Oliveira*
Prática comum desde a antiguidade, a adoção em vários períodos históricos representava um instrumento que privilegiava o interesse dos adultos. Porém, isso vem mudando e uma nova cultura da adoção se difunde em todo o mundo.
No Brasil, um marco histórico ocorre com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em julho de 1990, que assegura a proteção integral e determina, em seu artigo 43, que a adoção deve ser orientada para o interesse superior da criança e do adolescente, ou seja, apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos.
Desde então, o número de adoções tem aumentado em todo o país e os pretendentes têm se mostrado mais flexíveis no perfil do filho desejado. Adoção de crianças de cor diferente da dos pais adotantes, crianças acima de cinco anos de idade e de grupo de irmãos são características que se mostram em leve ascendência na preferência dos pretendentes.
Ainda assim, é preciso uma maior mobilização da sociedade para atenção às crianças e adolescentes acolhidos em instituições e que se encontram em processos de adoção. São mais de 3.000 crianças inseridas no Serviço Nacional da Adoção (SNA) à espera de uma família para ser chamada de sua. Destes, mais de 70% estão acima de oito anos de idade, adolescentes, grupos de irmãos ou com algum problema de saúde. Por outro lado, embora a fila de pretendentes à adoção já habilitados e inseridos no SNA seja muito maior, em torno de 28 mil, a maioria deseja um filho que tenha menos de cinco anos de idade.
O Grupo Aconchego e outros grupos de apoio à adoção investem em encontros de preparação, de trocas e compartilhamento de experiências. Provocam reflexões sobre expectativas e motivações dos pais, mitos, origem da criança, filho idealizado, tempo de espera, etc. Temas importantes para a definição do perfil do filho desejado. São conversas como essas que podem dar forma ao projeto de parentalidade pelas vias da adoção.
Já no processo de habilitação, tenho escutado de alguns pretendentes à adoção que estão passando pelo processo que uma das questões que mais os deixam constrangidos ou que os impactam é quando são solicitados a definir o perfil da criança que querem adotar, ou seja, quando são chamados a preencher a planilha com seus dados e as expectativas da criança que desejam adotar. Ao serem questionados sobre a razão, costumam dizer que na gestação biológica, não se escolhe a criança, apenas deixa vir a termo. Alguns apelam para a sua religião, justificando a vontade de Deus. Outros se sentem escolhendo uma mercadoria. E ainda há quem acredite que esse ponto é apenas um dos aspectos para realizar o seu sonho de maternidade e paternidade.
De qualquer maneira, é uma questão importante a se refletir quando se pensa na constituição da parentalidade pela via da adoção para que isso não cause mal-estar a nenhuma das partes no futuro, seja culpa, vergonha, menos valia etc.
Mas, como escolher o perfil da criança que deseja ter como filho? O que de verdade importa nessa pergunta? Importa a sua aparência física? O gênero? A sua saúde? A sua capacidade intelectual? A sua idade? A sua história? Qual a disponibilidade e os limites para essa gestação adotiva? Conseguirá amar uma criança com uma história de violência? Uma criança grande, um adolescente? Conseguirá lidar com os preconceitos advindos de uma adoção inter-racial?
Pontuo que essas e outras perguntas devem fazer parte do tempo de preparação juntamente com outros temas que evocam autoconhecimento e aprendizado, como a motivação, mitos e preconceitos, a criança idealizada, a origem da criança, desenvolvimento psicoafetivo da criança e do adolescente; entre outros que emergem dos encontros de preparação.
Mas, seguindo o processo de adoção, preenchida a planilha, documentos entregues, encontros de preparação e psicossocial finalizados, o pretendente é habilitado e começa o tempo de espera pelo filho desejado. Dependendo da comarca, esse pretendente pode ser encaminhado para um Grupo de Apoio onde continuará o seu processo de preparação.
A depender do perfil escolhido, pode ser uma gestação muito demorada, e com o decorrer do tempo, é possível que o pretendente se canse, desanime e se sinta desmotivado a permanecer nessa espera. Sente-se frustrado e não entende o sistema, muitas vezes se questionando: “são tantas crianças abandonadas à espera por uma família que não vejo razão para essa demora. Basta ir em um “abrigo” para ver que bebês e crianças estão lá aguardando uma família”. Diante disto, alguns pretendentes desistem do “projeto filho”, outros mudam o perfil para acelerar o processo e outros ainda buscam na informalidade ou tentam burlar as regras para encontrar o filho desejado.
Olhando pelo lado das crianças e adolescentes, o tempo de espera também é angustiante. Nada sabem sobre o seu futuro, se voltam para a família de origem, se vão para uma família por adoção ou se esperam os 18 anos para saírem da instituição. Na verdade, eles pensam pouco sobre isso. Apenas vivem um dia após o outro. A maioria dessas crianças estão acima da idade pretendida pela maioria dos adotantes.
Como psicoterapeuta e supervisora nos trabalhos de preparação de adotantes privilegio a escuta do desejo do adotante, se ele deseja o bebê ou uma criança maior. É desse lugar que o processo se inicia. Para mim a definição do perfil pode ser, ou não, resultado de um longo trabalho de reflexão e análise. Pode acontecer quando o candidato faz uma releitura de seu desejo: “Desejo um bebê, ou desejo um filho? Se é um filho, ele pode ter mais idade? Pode ser uma criança, um púbere, um adolescente?” O desejo pode ir se construindo e se modificando ao longo da espera, não porque só existem crianças maiores nas instituições, mas porque encontram nesse tempo de espera, um lugar para um filho diferente daquele imaginado.
Compreender e aceitar a gestação adotiva como um processo diferente da gestação biológica banhado pelo conhecimento e pelo amor é uma ponte segura para uma adoção bem-sucedida. Penso que esse é um tema a ser discutido e elaborado junto com grupos de apoio à adoção, ou com psicólogos.
*Psicóloga e coordenadora do Grupo Aconchego.