Por Luiza Souto – De Universa

Por volta das 5 horas de uma manhã gelada de julho uma bebê recém-nascida foi encontrada embaixo de uma árvore, sem roupas e ainda com o cordão umbilical, no bairro Jardins do Cerrado I, em Goiânia. Uma moradora que passava pelo local acionou a polícia e a menina foi levada para uma maternidade, onde ficou internada por 11 dias e ganhou o nome de Rebeca.

Ela teve alta no último dia 1 de agosto e foi acolhida pelo abrigo Residencial Professor Niso Prego. Caso seus responsáveis não sejam localizados em até 30 dias, pode ser liberada para adoção, de acordo com o conselheiro tutelar Carlos Caetano, que atendeu a ocorrência.

Situações de abandono como a de Rebeca acontecem pelo menos oito vezes por dia em todo o Brasil, segundo dados do SNA (Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento) e disponibilizados pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) a Universa após pedido via Lei de Acesso à Informação. De acordo com o artigo 134 do Código Penal, o responsável por abandonar uma criança pode receber uma pena de detenção de 6 meses a 3 anos.

“Em casos assim, é difícil encontrar o responsável, porque abandono é crime. Se todas as mães soubessem que estão amparadas pela lei para entregar a criança às Varas da Infância, isso não aconteceria”, diz o conselheiro tutelar, por telefone, Universa.

De 2015 a julho de 2021, de acordo com dados obtidos com exclusividade pela reportagem, 18,7 mil crianças e adolescentes entre 0 e 18 anos deram entrada em serviços de acolhimento com o motivo “abandono pelos pais ou responsáveis”. Ao todo, o país tem hoje 29,2 mil crianças e adolescentes em 4.594 locais como esse.

O acolhimento de uma criança ou adolescente é determinado pela Vara da Infância e da Juventude e solicitado pelo Conselho Tutelar em ocasiões como abandono, morte dos pais, violência, situação de rua, entre outros cenários que colocam essas pessoas em perigo.

Toda vez que um menor é retirado de onde vive e colocado em um serviço de acolhimento, é preciso preencher uma guia com dados como o motivo da institucionalização, explica Isabely Fontana da Mota, subcoordenadora do Grupo de Trabalho de Gestão dos Sistemas e Cadastros do CNJ.

Ela atenta, porém, que quando não se sabe o motivo ou a razão do acolhimento, utilizam-se com mais frequência os termos negligência e abandono. “Depende da interpretação de cada juiz. Alguns motivos de acolhimento são mais fáceis de identificar, como suspeita de abuso e orfandade”, diz Isabely.

“Quando falamos em acolhimento, estamos falando de crianças pobres”

“As situações de abandono mais comuns são bebês encontrados até no lixo, ou crianças e adolescentes andando nas ruas depois de fugir de casa. Até localizarmos os pais, a gente coloca em acolhimento. Às vezes, os pais deixam em hospitais crianças que têm graves problemas de saúde”, explica a juíza Katy Braun do Prado, da Vara da Infância, da Adolescência e do Idoso de Campo Grande (MS).

Além dessas formas de abandono listadas por Katy, outros principais motivos que levam uma criança ao acolhimento são a negligência, a violência e a perda de capacidade dos responsáveis de cuidar, por uso de substâncias psicoativas, por exemplo.

“O que leva ao acolhimento, em geral, é a falta de políticas públicas na área social. Pela lei, a criança é acolhida em situação de risco como fome, ou quando o responsável está em situação de droga. Então, quando falamos em acolhimento, estamos falando de crianças pobres.” diz Iberê de Castro Dias, juiz titular da Vara da Infância e Juventude de Guarulhos (SP) e assessor da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo.

Iberê reforça o papel do estado com essas famílias. “Tudo do que vamos tratar decorre de políticas públicas”, diz. “Muitos culpabilizam a mãe pelo abandono, uma mulher que muitas vezes nunca foi ensinada a cuidar. Esse é um dos papéis do estado”, afirma. Ele ainda lembra que, em famílias ricas, também acontece o abandono. Quase sempre, de cunho afetivo — questões que vão parar nos divãs terapêuticos.

Abandonada ao nascer e fuga na adolescência

A estudante de fisioterapia Estela Rodrigues, 18, foi abandonada pela mãe ainda recém-nascida. Ela já tinha 9 irmãos e, sem um responsável que pudesse cuidar da família, foi parar, junto com eles, em um abrigo na cidade de Guarulhos, região metropolitana de São Paulo. Ali, Estela permaneceu até os 7 anos, quando sua avó materna conseguiu a guarda de todos os irmãos. O que era para ser um recomeço numa casa grande com quintal tornou-se uma rotina de violência.

Os detalhes desse passado Estela prefere esquecer, mas ela conta a Universa que, no local onde vivia com sua avó, um tio e uma tia, ela e os irmãos eram diariamente espancados. Aos poucos, cada criança foi fugindo de casa. Sem nunca ter contato com a mãe, Estela passou dias na rua, usou drogas, e aos 15 foi levada para um abrigo. Hoje, aos 18, ela mora numa república que acolhe jovens em processo de desligamento desses serviços, o Celeiro Vó Tunica, na capital.

“Só no abrigo consegui terminar os estudos. Enquanto meus irmãos seguem nas drogas, cada um morando em uma favela, eu consegui emprego numa seguradora, comecei a faculdade de fisioterapia e estou juntando dinheiro para dar entrada em um apartamento, comprar uma moto e adotar uma criança”, planeja.

O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) determina que o acolhimento institucional seja uma medida protetiva excepcional e provisória. A partir do momento em que a criança e o adolescente são acolhidos, a prioridade é que eles retornem para o seu lar, ou morem com quem tenham algum vínculo. A busca por essa chamada família extensa deve ser feita num prazo máximo de 90 dias.

Esgotadas essas possibilidades, e percebendo que não há condições para que essa pessoa acolhida retorne para sua casa, ela entra na fila de adoção, tema abordado na segunda reportagem dessa série sobre abandono, acolhimento e adoção.

Pandemia reduziu acolhimento, mas isso não é boa notícia

Pelos dados do CNJ, percebe-se uma redução de cerca de 15% de acolhimento de crianças abandonadas entre 2019 e 2020, ano em que o mundo foi atingido pela pandemia da covid-19. Mas a juíza Katy Braun do Prado observa que essa diminuição não aconteceu porque as crianças passaram a ser bem cuidadas:

“As escolas são parceiras para descobrir violação de direitos humanos e o afastamento de crianças desses lugares tirou essa fonte importante de fiscalização. Com o retorno gradativo, a gente já está recebendo novas denúncias. Aqui em Campo Grande, na primeira semana de aula, seis crianças revelaram abuso.”

A pandemia trouxe dificuldade em fiscalizar situações de risco como o de abuso, por exemplo. Investir na restauração das famílias e do ambiente social é fundamental para reduzir esses números.

“Enquanto continuarmos a apagar incêndios, vamos falar sobre isso em 2030. Estamos descendo a ladeira. Tenho dificuldade de enxergar um cenário de melhora”, lamenta Iberê Dias.

Como denunciar

Se uma pessoa tem notícia de algum fato que coloque alguma criança em risco, deve denunciar à Vara da Infância, ao Ministério Público ou ao Conselho Tutelar que atua na região.

É possível também fazer uma denúncia anônima, pelo telefone 180, do Governo Federal.

Esta reportagem faz parte de uma série sobre Abandono, Acolhimento e Adoção. Leia também: ‘Esperei minha filha por 8 anos’: como é a fila de adoção no Brasil e ‘Vivi dos 7 aos 18 anos em abrigo; é triste crescer sem mãe nem referência’

Fonte: Universa (UOL)

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